segunda-feira, 26 de abril de 2021

Canal des Deux-Mers (II): Canal du Midi em bicicleta

 

Écluse de Vic, em Castanet-Tolosan 


Texto de António José Soares. Fotografia António José Soares e António Pedro Carvalho


Jornada a pedalar ao longo do canal, pelo  País Cátaro, entre Toulouse e Carcassonne.

Toulouse
A chegada a Toulouse encerrou a primeira fase da aventura pelo Canal des Deux-Mers, ao chegar ao fim o percurso pelo Canal Latéral de La Garonne. 
O estado de espírito em relação à segunda parte que se iria seguir era de alguma apreensão, mormente sobre o o eventual surgimento de  dificuldades adicionais relacionadas com as implicações geradas pelo abate dos muitos plátanos ao longo do canal, e a consequente diminuição de zonas de sombra que tal acção comportou. Também o surgimento do tipo de piso um bastante mais irregular em muitos troços, implicaria  forçosamente uma diminuição da velocidade média diária.
A estadia no parque de campismo de Toulouse foi aproveitada de forma exemplar para retemperar forças e recarregar energias para nova jornada. Assim que deixámos o parque, os primeiros quilómetros, até ao centro da cidade, foram efectuados na companhia de uma ciclista francesa que também pernoitou no mesmo parque, e que agora finalizava o seu Tour de VTT, com início nos Pirinéus. Aproveitámos os breves instantes e fomos trocando alguns dedos de conversa até ao início do Canal du Midi, altura em que nos despedimos, seguindo destinos opostos. 

Ramonville-Saint-Agne
Talvez um pouco receosos da propagação do “covid”, não aproveitámos, como seria desejável, a passagem por Toulouse a fim de  descobrir os muitos motivos de interesse da Cidade Rosa, assim apelidada em razão dos tons rosa-laranja dos  edifícios. Assim, ignorámos a famosa Place du Capitole, e outras obras-primas arquitetónicas como a basílica românica de Saint-Sernin, a Igreja dos Jacobinos ou o Hotel Renaissance em Assézat.
Não houve igualmente oportunidade para degustar algumas das especialidades culinárias do Sudoeste. A única pausa foi efectuada numa caféterie / boulangerie, adjacente ao canal, onde a prioridade estava direccionada para o pequeno-almoço, que foi, aliás, sublime. 

Ayguesvives 
Saímos de Toulouse deixando para trás o burburinho da cidade, pedalando ao longo do canal como que embalados pelo suave bater da água, apreciando com muito agrado o fresco emanado da sombra do arvoredo. Não resistimos a uma primeira paragem na Écluse de Castanet, em Castanet-Tolosan, para a captação de uma atractiva sequência de imagens.
Fomos prosseguindo até às primeiras aldeias de Lauragais. Em Montesquieu as  suas torres sineiras são perceptíveis à distância, conseguindo-se fazer assinalar bem na paisagem. Fomos pedalando por uma fértil planície agrícola rodeada de colinas, território que o canal valorizou bastante nos últimos séculos. Antes, porém, em Montgiscard, tratámos de aprovisionar os alforges com bom queijo e carnes frias, pão, fruta e a indispensável bebida, para um magnífico piquenique à beira do canal, na zona de Ayguesvives.

Écluse de Gardouch 
À semelhança da paisagem, as cores, mais quentes, são evidências predominantes nos traços de diferença do Garonne para o Midi. No fundo a marcar a diferença da região da Aquitânea para a Occitânia, onde são também visíveis, sobretudo nos batéis, peniches no nome original, ancoradas no canal. Continuámos a pedalar, atravessando o território e usufruindo da magnífica paisagem, passando em lugares assinaláveis na história do catarismo, como Avignonet-Lauragais. O dia estava magnífico, apesar da alta temperatura, íamos aproveitando os troços do canal e pedalando pela sombra dos plátanos, onde a contaminação pelo cancro colorido não tinha chegado.
A jornada começava a fazer mossa, não só nas pernas, como pelo corpo todo. Deste modo, aproveitando a passagem pela bela cidade de Castelnaudary, efectuámos uma pausa para recuperarmos energias. De forma fugaz ainda espreitámos um pouco a cidade e o seu pequeno porto, muito conhecida na gastronomia local pelos saborosos cassoulets, espécie de feijoada francesa, que não tivemos o ensejo de poder provar. 

Gardouch, aqueduto sobre o Hers  
Para encerrar a jornada já não nos faltava muito tempo até o dia findar e muitos quilómetros até chegar a
Carcassonne, onde nos aguardava um quarto reservado na Pousada de Juventude. E esta foi a parte mais penosa da etapa, com a fadiga acumulada, o tipo de piso que alterou radicalmente, alternando entre estradão e caminho de terra batida, por um lado mais aliciante a permitir pedalar em modo BTT, mas obviamente noutras circunstâncias, sem a carga nas bicicletas e sem a noite pela frente.

Passámos em Bram a pedalar na máxima força, sem tempo para pausas, procurando imprimir o ritmo mais forte que as pernas permitiam. Seguíamos a bom ritmo, procurando evitar obstáculos, sobretudo raízes de árvores, quando inesperadamente fomos surpreendidos por um enorme ragondin, espécie de mamífero semi-aquático que prolifera nestes habitats, parecida com um castor, a atravessar-se na frente da bicicleta e a mergulhar no canal, episódio que se repetiu por três a quatro vezes no percurso, e cujos quilómetros finais concluímos guiados pelas luzes da bicicleta.

 Castelnaudary 
Foi, completamente extenuados, que por fim nos aproximámos das imediações da antiga cidadela medieval de Carcassone. Embora já conhecesse a cidade, a fadiga era tal que arruinou por completo o meu discernimento e sentido de orientação. 
Com o GPS indisponível, valeu a melhor presença de espírito do TóPê, que mesmo contagiado pelo meu desnorte, e apesar de igualmente exausto, foi determinante para encontrarmos o caminho até à pousada de juventude, na velha Cidadela. Depois de instalados, um relaxante duche e uma boa cama foram fundamentais para uma noite de descanso e recuperação de uma dura jornada de 105 quilómetros. Desta vez sem necessidade de armar tendas e encher colchões insufláveis.

A passear pelo Aude


Castelo de Carcassone
Assinalava o relógio dez para as sete, hora marcada para o pequeno-almoço, e já o TóPê deambulava entre as muralhas captando pormenores e perspetivas da cidadela e do monumental castelo, restaurados pelo conceituado Emannuel Viollet-le-Duc, famoso arquitecto revivalista francês do século XIX. Reunidos no terraço da pousada, à hora marcada para o pequeno-almoço, procurámos o melhor proveito da refeição, e usufruímos os poucos minutos de descanso no terraço, como um tónico para enfrentar a difícil jornada que se antevia.

Deixámos a pousada e o excelente acolhimento da pousada. Pedalando entre muralhas com uma última vista sobre o castelo. Descemos até à cidade nova e às margens do rio Aude, de onde emergem as impressionantes muralhas da cidade medieval. Após apanhar a rota do canal seguimos para Sul, convivendo com o animado movimento dos barcos. Nas margens, são notórios um alinhado conjunto de novas árvores replantadas, substituindo o que pensamos ter sido os plátanos anteriormente existentes.

Trèbes 
Seguíamos a um ritmo de pedalada moderada nos primeiros quilómetros, em
Trèbes, à vista do Cantinho Português, épicerie e specialité portugaises, e da bandeira portuguesa, decidimos parar, embora sem sucesso porque estava encerrado. Em alternativa deixámo-nos seduzir pelo menu do dia na esplanada de um pequeno restaurante à beira do canal, aproveitando para desfrutar do momento. A jornada corria-nos de feição... A atravessar o departamento do Aude, o canal levou-nos, depois, por Minervois, com as encantadoras aldeias do vinho, cada uma com o seu pequeno porto. O tempo que dispúnhamos infelizmente era escasso e não permitia o afastamento da rota.

L'Epanchoir de l'Argent Double 
Com o calor a condicionar a nossa progressão, na passagem das imediações de La Redorte, destaco o momento do encontro com o L'Epanchoir de l'Argent Double, vertedouro construído para evacuar o excesso de água do canal, durante as enchentes ou para o esvaziar para outras situações. Está hoje classificado como monumento histórico, tendo a sua construção ocorrido entre 1677 e 1694, segundo os planos do arquitecto militar francês, Sébastien Le Prestre de Vauban. Um pouco mais à frente, sentimos alguma sensação de frescura, com os salpicos da água projectada pelas rodas das bicicletas, na passagem sobre o aqueduto, com o mesmo nome.
Prosseguimos alternadamente entre as vinhas e o canal, passando ao largo de Argens-Minervois, vila típica da região de Minervois, organizada em torno de um castelo do século XIV que domina o canal e o rio Aude. Mais à frente, Ventenac-en-Minervois, banhada pelo Aude, é construída em anfiteatro sob uma colina de onde se desfruta uma bela perspectiva sobre a planície de Canet, Raissac e Saint-Nazaire. 
 Le Somail 
Finalmente Le Somail, aldeia que nos seduziu pelo encanto do seu aglomerado antigo, conjunto onde se destaca a velha ponte em pedra, a fazer lembrar o dorso de um burro, e o seu pitoresco porto, a evidenciar animada movimentação nocturna. Pretendíamos aqui passar a noite, porém, face à escassez de alojamentos indicaram-nos o campismo municipal, na vila vizinha de Mirepeisset, a cerca de cinco
quilómetros, que foi para onde nos dirigimos, finalizando a curta, mas dura, jornada de 66 quilómetros.
À chegada ao Camping Marvilla Parks - Le Val de Cesse, estávamos ciosos de boas intenções, a contar com um mergulho no rio Cesse. Contudo, assim que largámos as bicicletas, a fadiga dominou-nos de tal forma que apenas houve lugar para os indispensáveis afazeres e a um breve jantar no restaurante do parque.

EPÍLOGO -  De Le Somail a Béziers


Pont-canal de La Cesse 
Pela manhã, no regresso à rota do canal, em Le Somail procurámos local para o café da manhã, com praticamente todos os cafés encerrados, indicaram-nos o La Péniche Epicière, embarcação a servir também para loja de souvenirs,  e onde pudemos, calmamente, à beira do canal, tomar o pequeno-almoço.
De regresso ao pedal após a passagem no vertedouro de Patiasses, no seu nome original Épanchoir des Patiasses cruzámos o Cesse na ponte canal com o mesmo nome, cuja construção, entre 1689 a 1690, decorreu sob orientação do engenheiro Jean Goudet, por iniciativa de Vauban, que trabalhou para melhorar o sistema de abastecimento de água do Canal e a sua operação. A estrutura tem sessenta e quatro metros de comprimento e catorze metros de altura. Após passarmos sobre o rio continuámos até Capestang e ao seu animado porto, cuja imponente torre sineira da colegiada gótica de Saint-Étienne, domina do alto dos seus 45 metros de altura.

Capestang 
Abandonámos o porto de Caspestang e seguimos na direcção à colina de Ensérune, na zona das Malpas por onde Paul Riquet escavou o primeiro túnel do mundo, atravessado por um canal navegável, em tempo recorde e em rocha relativamente solta, com o propósito de levar o canal pela sua cidade natal, Béziers. O Tunnel de Malpas tem um comprimento de cento e setenta e três metros, seis metros de largura e oito metros e meio de altura. Possui trinta arcos que sustentam uma abóbada contínua em todo a sua extensão. Na margem esquerda, um caminho pedonal atravessa-o em toda a sua amplitude.
Após a passagem das Malpas, não demorámos muito a chegar a Colombiers, pequena cidade com séculos de história, cujo porto é abrigo para diversos tipos de embarcações de recreio, e ponto de partida para muitos turistas que fazem o seu cruzeiro no Canal du Midi. O sol abrasador que se sentia convidou-nos a uma pausa no porto para degustar uns mexilhões e uma lourinha bem gelada.

Tunnel de Malpas 
Novamente a rolar, eis-nos por fim, às portas de Béziers, à vista das Écluses de Fonséranes, também conhecidas como as fechaduras de Fonséranes. Projectadas por Paul Riquet, demoraram dois anos a ser construídas, no final do Século XVII, entre 1678 e 1680. Estrutura de dimensões incomuns, as nove eclusas, classificadas como monumentos históricos, são, sem dúvida a obra mais espectacular do Canal du Midi, e o local mais visitado da região do Hérault
Permitiram a ligação do canal com o leito do rio Orb, atravessando os barcos um desnível até vinte metros de altura. É a majestade do óctuplo, com oito fechaduras e nove bacias ovais, em fileira, constituindo, na verdade, apenas uma escada de água, para permitir que os barcos sejam elevados a uma altura total de 21,5 m e a uma distância de 312 m. No alto está igualmente situada uma antiga capela, agora destinado ao turismo.
Béziers - Écluses de Fonséranes 
Do alto de Fonséranes, com as bicicletas pela mão, descemos a rampa, observando calmamente a magnitude das eclusas e o movimento dos barcos, um espectáculo único. Deslumbrante é igualmente a panorâmica que se obtém sobre Béziers, do alto de Fonséranes, destacando-se a perspectiva sobre a Cathédrale Saint-Nazaire. Após descer por completo a eclusa, fomos pedalando, lentamente, procurando retardar a passagem na Pont-Canal de l'Orb, a qual foi efectuada a um ritmo ainda mais lento, procurando usufruir, na plenitude, a fantástica panorâmica Béziers.
A Pont-Canal de l'Orb
Béziers - Écluses de Fonséranes
, é uma das maiores pontes-canal da França, a jusante das eclusas de
Fonseranes. A imponência dos seus duzentos e quarenta metros de comprimento e vinte e oito metros de largura, para uma altura de doze metros, conferem-lhe um ar majestático. No entanto os seus sete arcos conferem-lhe uma elegância acentuada pela galeria que corre por baixo do canal, permitindo, assim, a manutenção da estrutura. Foi concluída no Século XIX, pelo engenheiro do Canal, Jean Magues, sendo considerada monumento histórico, desde 29 de agosto de 1962.
Com a nossa aventura a terminar. Seguimos do canal à gare da SNCF, onde tentámos comprar bilhetes para o regresso, mas sem êxito. Embora prevíssemos terminar em Sète, a confirmação da inexistência de lugares no comboio para a viagem de regresso, implicou uma alteração ao plano inicialmente estabelecido e decidimos antecipar o final da aventura para Béziers. Reservámos lugares no Camping Les Berges du Canal, em Villeneuve-lès-Béziers, sendo ainda necessário pedalar mais dez quilómetros, até podermos, finalmente, descansar da extenuante jornada.
Em Villeneuve-lès-Béziers, junto ao canal, aproveitámos para fazer o rescaldo da recente aventura, concluída com os derradeiros 50 quilómetros, desde Mirepeisset, com os patos a atazanarem-nos a paciência, grasnando num chinfrim ensurdecedor.
Finalmente a sorte pareceu querer  sorrir-nos, através do bilhete de TGV  Béziers-Bordeaux,  providencialmente adquirido por por um amigo, via internet, e que seria fundamental para o resgate da viatura no sentido da viagem de operar a viagem de regresso de uma aventura inesquecível.

Béziers - Pont-Canal de l'Orb 




























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