quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Canal des Deux-Mers (I): Le Canal de Garonne em bicicleta



Dpois de duas primeiras tentativas planeadas, finalmente, a 25 de Julho de 2020, iniciei a viagem rumo a Bordeaux, a fim de concretizar o sonho antigo de percorrer em bicicleta o magnífico Canal des Deux Mers. Fantástica obra de engenharia civil e hidráulica, cuja primeira fase ocorreu no último quartel do século XVII, entre 1662 e 1681, com a construção da Canal du Midi e posteriormente, com a completa ligação fluvial entre o Mar Mediterrâneo e o Oceano Atlântico, através da conclusão, em meados do Século XIX, mais concretamente em 1856, do Canal Lateral à la Garonne, tendo sido considerado pela UNESCO, desde 1996, Património da Humanidade.

Preparação da viagem


Bordeaux- marginal
O plano inicial, de realizar a aventura em companhia do amigo JOPARESI, saiu gorado, em consequência de uma arreliadora lesão nas costas de que este foi acometido, à última hora, obrigando-o a desistir.

Costuma dizer-se, quando para uns o azar bate à porta, para outros, a sorte sorri. Neste caso tive a felicidade de ser contemplado com a companhia do meu filho TóPê, que, em boa hora, aceitou o meu desafio. Assim, o que inicialmente estava para ser um tour de bicicleta protagonizado por dois amigos acabava de ser transformado numa aventura familiar de pai e filho. 

A logística estava pronta, apenas com a necessidade de alguns ajustes à preparação inicial, mantendo-se todo o restante. A viagem para França em automóvel e o plano de viajar em autonomia, a partir de Bordeaux, pernoitando em parques de campismos, com uma ou outra adaptação. Os alforges foram carregados com uma lista de utensílios básicos, considerados importantes.
Bordeaux - Le Miroir d'eau

Não foi esquecida a roupa de ciclismo, umas calças/calção leves de passeio, meias e roupa interior leve, toalhas, sem esquecer carregadores, power bank, saco-cama, almofada e colchão insuflável, tenda, lanterna para bicicleta, equipamento adicional da bicicleta, assim como algumas barras energéticas. O material deve ser o mais leve possível, por isso aconselha-se a ponderar, sempre, na altura da compra.

A travessia de Espanha decorreu tranquilamente, tendo sido já com a luz do dia a querer fugir que chegámos ao parque de campismo Village Bordeaux Lac, onde pernoitámos. O mesmo não foi difícil de encontrar, mercê da sua excelente localização. A nossa passagem foi fugaz, sem lugar a histórias para contar, procurando apenas usufruir do descanso que a estadia proporcionou a fim de enfrentar a primeira jornada da aventura que agora começava.

Bordeaux e as vinhas da Aquitânia

Bordeaux - Pont Pierre
Assinalava o relógio as 07:40 de Domingo, 26 de Julho, quando já despertos, tratámos de dar início à nossa nova rotina. Guardado o carro num espaço adjacente à recepção do parque, aí montámos as bicicletas e acondicionámos as bagagens nos alforges, para finalmente dar início à aventura.

Deixámos o parque e seguimos pela via ciclável Roger Lapébie, mas ainda não tínhamos pedalado quinhentos metros e logo a primeira contrariedade nos surgiu, com obras na via a obrigar a seguir por um desvio no percurso pelo qual pedalámos até ao centro de Bordeaux. Aqui chegados, junto ao skate parque, na margem esquerda do Garonne, e depois de captar umas imagens, continuámos a pedalar pela marginal até ao Le Miroir d'Eau, espelho de água refrescante e de belo efeito.

Pista Roger Lapébie 


Pedalámos sob a monumental Pont de Pierre, ponte de pedra na tradução à letra, projectada pelos engenheiros Deschamps e Billaudel, a primeira a ser construída na cidade, com o fim de resolver espinhoso problema da travessia do Garonne. Com quatrocentos e oitenta e seis metros de comprimento e dezassete arcos, a ponte foi aberta ao tráfego em 1822.
Começávamos a sentir alguma fraqueza, sentíamos, pois, necessidade de encontrar um local onde nos pudéssemos alimentar. O receio da pandemia aconselhou-nos a evitar o mais possível a permanência em grandes aglomerados, assim fomos continuando a pedalar pela ciclovia. 

Na periferia de Bordeaux abandonámos a pista ciclável e acedemos à esplanada de um restaurante integrado numa zona comercial, onde juntámos almoço e pequeno-almoço. Após a refeição regressámos à pista Roger Lapébie, que agora se desenvolve pelo troço de uma antiga linha de caminho de ferro desactivada, com o traçado desta a afastar-se do rio seguindo mais para o interior, por uma zona bastante arborizada.

Créon
A pedalar em bom ritmo não demorou muito a alcançar a pequena cidade de Créon. Após uma bebida fresca tomada no café / bar instalado em frente ao antigo apeadeiro, continuámos, ora abrigados pela sombra do frondoso arvoredo que envolve grande parte da pista, ora pelos túneis que encontrámos da antiga linha, que constituíram fortes aliados antes de entrarmos na parte final do percurso, até Sauveterre de Guyenne, com ligeiro declive ascendente, rodeado de vinhas e onde o forte calor resolveu fazer-se sentir.



Avistámos, por fim, o arco da muralhada medieval de Sauveterre de Guyenne, local que assinala o fim do percurso pela via ciclável Roger Lapébie. Subimos, sob o arco da antiga muralha, em direcção ao centro da cidade, onde pontificam bonitos edifícios de traça antiga, de épocas distintas. Aqui chegados, a hora foi para nos saciarmos a beber um café numa esplanada situada sob uma das arcadas da praça.

Predominância dos vinhedos a marcar a paisagem
Prosseguimos, de seguida, para La Réole, por uma via secundária de reduzido tráfego, atravessando extensos vinhedos, numa paisagem verdadeiramente deslumbrante, ao entardecer, na companhia do pôr do sol. 
Com a noite a cair, chegámos ao parque de campismo de La Réole, situado na margem esquerda do Garonne. Com a recepção encerrada foi via telefone que autorizaram a nossa permanência. No espaço onde nos instalámos pernoitavam igualmente outros ciclistas, por certo também a pedalar pelo Canal. Por fim, bem já confortáveis e com a casa arrumada, ali mesmo na margem rio, a vontade para uma visita à cidade esmoreceu e acabámos por ficar a descansar nas tendas, depois de passar o dia a pedalar 81 quilómetros.

La Réole - Valence d’Agen, encontro com o canal na jornada mais longa

No deslumbramento do
Parque de Campismo em La Réole 
Hôtel Étoile,
 a relva fofa e o 
colchão insuflável embalaram-nos para uma  noite de sonhos sobre rodas, descansada e relaxante, que era tudo quanto necessitávamos. 
A manhã seguinte apareceu radiosa sorridente, na companhia dos primeiros raios de sol, que deixavam antever uma jornada longa e proveitosa.
Antes de continuarmos, voltámos a La Réole para primeiro pequeno-almoço em terras de França, desde que partimos, tendo-nos deliciado com os maravilhosos croiassants, pain au chocolate, confiture, enfim um verdadeiro pequeno-almoço à francesa.

De seguida iniciámos a jornada, para lograr alcançar o canal cerca de uns três a quatro quilómetros após a cidade, com as bicicletas vergadas ao peso dos alforges, continuámos a pedalar por uns bons quilómetros, passando ao lado de povoações como Hure e Meilhan-sur-Garonne.


Ancoradouro em Pont des Sables
Pedalávamos, desfrutando de uma incrível tranquilidade, com uma sensação de bem-estar, apenas por usufruir o simples prazer da condição de pedalar com a leve brisa a tocar-nos o rosto, gozando de liberdade e vivendo uma experiência incrível. como a que estávamos a passar. Foi, assim imbuídos deste espírito, que ao passarmos no ancoradouro situado em Pont des Sables, aproveitámos um banco estrategicamente colocado, e o reservámos, improvisando um piquenique, na companhia de um simpático casal de ciclistas, num ambiente calmo e aprazível.


Pont-canal sobre o Baïse
De volta ao pedal, sob a sombra dos plátanos, assim fomos até Port de Buzet, onde aproveitámos um momento de pausa enquanto nos refrescávamos, para observar a passagem de um barco na eclusa, entre o canal e o rio Baïse. Com o calor a apertar e por muito que gostássemos de usufruir do descanso na agradável esplanada, era imperioso continuar a pedalar. Cruzámos o Baïse pela primeira ponte canal que encontrámos, uma magnífica obra de arte de três arcos, de estrutura em pedra, com calçadas de seixos e grades de focinho de leão, edificada entre 1839 e 1853, projectada pelos engenheiros Baudre e Job.

Debaixo de uma temperatura escaldante chegámos avistamos a Écluse d'Agen, logo seguida da gloriosa passagem sobre o Garonne na imponente ponte-canal do mesmo nome, com os seus vinte e três arcos e quinhentos e cinquenta e cinco metros de comprimento que nos conduziria à cidade. Em Agen interná-mo-nos um pouco no interior, apenas para comprar bebidas e fruta, seguindo para Valence, com vista a recuperar alguns quilómetros perdidos na jornada anterior. E, assim, continuámos a pedalar num final de tarde a irradiar um colorido fantástico espelhado nas águas do canal.

Pont Le Passage - Agen

Em Valence, no encontro com duas simpáticas compatriotas  na sua habitual caminhada pelo percurso ao longo do canal, manifestaram-nos o seu desagrado e pena, por em consequência da pandemia, no corrente ano não viajarem para Portugal.  Após mais alguns dedos de conversa com as simpáticas compatriotas, ainda pedalámos mais dois quilómetros até, finalmente, terminar a etapa no parque municipal de campismo, onde nos instalámos num espaço aprazível e com excelentes condições.


Enquanto o TóPê armava as tendas, tratei do jantar deslocando-me para o efeito à zona comercial de Valence d’Agen, situada no extremo oposto da cidade. Por fim, exaustos, recolhemos às tendas para o merecido sono reparador de todo o esforço despendido nos 110 quilómetros desta segunda jornada, entre La Réole e Valence.


 A Caminho da Cidade Rosa


Moiassac, Abadia Saint-Pierre
Pelo terceiro dia consecutivo tivemos borla no parque de campismo. Depois de uma boa noite de descanso, acondicionámos a carga às bicicletas e dirigimo-nos ao centro de Valence para o pequeno-almoço e algumas compras para a viagem. Cumprido este objectivo, rumámos de novo ao canal. Enquanto pedalava sentia os olhos como pincéis sobre uma tela, colorindo as imagens que ia captando em tons de verde e azul, aqui e ali ponteadas de amarelo e demais cores, cujo reflexo esbatido na água as transformava em quadros verdadeiramente sublimes.


A suave brisa a embater-nos no rosto foi um excelente tónico para nos manter despertos. Assim a pedalar de eclusa em eclusa chegámos a Moissac, uma das mais importantes cidades do Caminho Francês de Santiago de Compostela. Moissac, cidade carregada de simbolismo, histórico e espiritual, onde tivemos oportunidade de admirar a extraordinária abadia românica de Saint Pierre, uma das catedrais mais importantes do Caminhos, também consagrada pela UNESCO como Património da Humanidade. 

Canal Du Cacor
Na rota da Via Podiensis, Moissac é um dos centros mais marcantes no itinerário jacobeu. Aqui, o espírito dos Caminhos não deixa ninguém indiferente. Assim, aproveitámos para conhecer um pouco a cidade antiga, e captar algumas imagens da praça e da abadia. Saímos da cidade acompanhados de uma pizza para o improvisado piquenique à beira do canal, confortavelmente instalados, num banco estrategicamente colocado, aproveitando a soberba panorâmica.

Um pouco depois, a fantástica travessia do rio Tarn constituiu, sem dúvida, um dos pontos altos do dia. Assim que passámos pela eclusa do Cacor, pedalámos sobre o Tarn através da magnífica Pont-canal du Cacor, uma das três grandes pontes-canal de França, construída na segunda metade do século XIX, sob a direção de Jean-Baptiste de Baudre, engenheiro de pontes e estradas. A estrutura é exuberante, sendo composta por tijolos de Toulouse e pedra de Quercy, tem catorze pilares e um comprimento total de trezentos e cinquenta e seis metros, por oito metros e trinta e cinco de largura. Destinada inicialmente ao transporte de mercadorias, entre Toulouse e Bordeaux, é hoje, exclusivamente dedicada a fins turísticos e de lazer.

Moiassac - Pont-Canal Du Cacor
A panorâmica é deslumbrante, e o espelho de água proporcionado pelo rio Tarne, associado ao movimento da passagem dos barcos presenteiam-nos com momentos incríveis de espetacularidade. 
Mas era preciso avançar e cerca das 15:40h estávamos já a passar em Castelsarrasin e no seu belo porto. Continuámos a pedalar, atravessando as povoações de Saint-Porquier, Montech, Dieupentale, Pompignan, Saint-Rustice e Castelnau-d'Estrétefonds, onde as nossas vistas se perderam na bonita Écluse de L'Hers e a ponte-canal que a precede sobre o rio, com o mesmo nome.

Próximo do final da tarde chegámos ao parque de campismo nas imediações de Toulouse, com excelentes instalações, onde o espaço reservado às tendas estava maioritariamente reservado por cicloturistas. Ainda houve tempo para desenferrujar o meu esquecido francês e trocar algumas impressões com a malta do pedal ali presente, que demonstrou muita afabilidade e simpatia, sendo de um modo geral bons conversadores. Monopolizámos grande parte da nossa atenção na conversa com os nossos vizinhos, um jovem casal em férias, pedalando com as suas bicicletas e a transportar em atrelado sua endiabrada filhota.

Moiassac - Pont-Canal Du Cacor

Acabámos numa caminhada noturna até um restaurante situado nas imediações do canal, onde relaxámos do esforço despendido nos 87 quilómetros da jornada. Concluídos os três primeiros dias pelo Canal Lateral de La Garonne, encerrando a primeira parte da aventura, tendo pedalado um total de 278 quilómetros, desde que saímos de Village Bordeaux Lac, era altura para fazer um rescaldo da experiência, que ambos considerámos estar a superar as nossas expectativas.



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