História

Califa Omar

A origem das peregrinações.

A conquista de Jerusalém pelo califa Omar, no ano de 638, levou os cristãos a procurar outros lugares de peregrinação, nomeadamente a Roma e Santiago de Compostela.
Foi já no decorrer do ano 813 que o eremita Pelayo afirmou ter visto umas estrelas que apontavam para um ponto em concreto no bosque Libredon. A notícia chegou rápida ao bispo de Iria Flávia, Teodomiro, que acorreu ao local, e, após três dias de observação em jejum, descobriu junto de uma pequena casa o sepulcro de Santiago o Maior, filho de Zebedeu, e o dos discípulos Atanásio e Teodoro, que trouxeram o seu corpo de Jerusalém até à costa galega e daqui pelo rio Ulla até Iria Flávia, hoje a cidade moderna de Pádron.

Carlos Magno
A descoberta do túmulo do Apóstolo aconteceu numa época de domínio muçulmano em quase toda a península. Assim, a par do interesse em suster os avanços das invasões árabes, a, descoberta das relíquias do apóstolo transformam totalmente Compostela, que progressivamente evoluiu de um centro religioso local para centro de peregrinações e sede episcopal.

No ano  900 do século IX foi difundida por toda a Europa uma carta falsa, subscrita pelo Papa Leão, explicando a trasladação e o achado do corpo de Santiago. Na sequência da divulgação desta carta, o movimento das peregrinações a Compostela conheceu um crescimento e um fulgor sem precedentes, nunca mais parando de aumentar, até aos nossos dias.

O bispo de Puy, Godescalc, com o seu séquito, foi um dos primeiros altos clérigos a peregrinar a Santiago. Naquela período da Idade Média os caminhos não estavam tão sujeitos à ameaça dos muçulmanos, como viria a acontecer mais tarde, em 997, quando estes, conduzidos por Almançor, vizir do califado de Córdoba, pilharam e incendiaram a cidade de Santiago.

Durante os primeiros decénios do século XI, o começo da reconquista marcou a chegada de uma era de prosperidade, muitos mercadores e artífices de todo o tipo e vindos de vários locais afluíram aos lugares de peregrinação. Imensos tesouros deram entrada na catedral, garantindo as suas necessidades, as de Roma, assim como as dos soberanos de Leão e Castela.

Peregrino medieval
No apogeu das peregrinações a Compostela, milhares de peregrinos, assim como alguns monarcas e bispos percorrem grandes distâncias para mostrar devoção a um dos apóstolos que conviveu mais próximo de Cristo.

O auge das peregrinações, neste período coincidiu com o da Ordem de Cluny, que encorajou o culto das relíquias, publicando a vida dos santos e fazendo a recolha dos seus milagres. Em consequência outros santuários de menor importância desenvolvem-se paralelamente, sem no entanto eclipsar o esplendor de Santiago de Compostela.


Do século XI ao século XII, as igrejas de repouso foram aparecendo ao longo das rotas de peregrinação tanto em França como em Espanha. Particularmente em França, dada a influência de Cluny, os devotos orgulhavam-se das santas relíquias nas suas igrejas. Com efeito o culto das relíquias constituiu o pilar principal da peregrinação medieval.

Ao mesmo tempo, o culto da Virgem Maria conhece um fervor sem precedentes, as peregrinações a santuários como os de Notre-Dame du Puy, Notre-Dame de Chartres e Notre-Dame de Boulogne, reputados desde o início da Idade Média, conhecem uma espectacular renascença no século XII, consequência da importância que ganharam as peregrinações a Santiago de Compostela. Destas três igrejas a de Puy, em Auvergne, era a que mais estreitamente estava ligada a Santiago de Compostela.




“Codex Calixtinus”, manuscrito que muitos atribuem a autoria ao Papa Calixto II, Guido de Borgonha, abade de Cluny, eleito Papa no ano de 1119 e que ocupou o cargo até 1124, data da sua morte. Era irmão de Raimundo de Borgonha, conde da Galiza e primo de D. Henrique de Borgonha, conde de “Portucale”, pai de D. Afonso Henriques. O códice encontra-se guardado no arquivo da Catedral de Santiago, consta de cinco livros de extensão semelhante, excepto o primeiro, que preenche cento e trinta e nove de um total de duzentos e vinte e cinco fólios.

Abre com uma carta do Papa Calixto II. Esta carta é pretensamente falsa, foi atribuída ao Papa Calixto II, com a intenção de, com ela fazer crer que as compilações se tratariam de um único volume, é um prólogo de dois fólios, onde é feita uma apresentação geral da obra e onde o mesmo testemunha alguns dos milagres efectuados pelo apóstolo Santiago.
Também é explicado como o manuscrito sobreviveu a todos os perigos possíveis, desde incêndios a inundações. A carta está dirigida aos altos clérigos responsáveis pela abadia de Cluny e a Diego Gelmírez, arcebispo de Compostela e grande arquitecto das peregrinações a Santiago.

O Livro I contém um conjunto de sermões e textos litúrgicos relacionados com devoção a Santiago, incluindo o relato do seu martírio, missas, ofícios e músicas, para a celebração das festividades em honra a Santiago - são assinaladas duas festividades distintas, uma a 25 de Julho, e, a mais antiga, a de 30 de Dezembro. No caso da primeira coincidir com um Domingo, este ano terá o privilégio de ser Ano Santo Jacobeo, ano em que se abre a Porta Santa da Catedral. Este volume constitui o núcleo central da obra, abarcando 139 fólios.

Bastante mais pequeno e de cariz marcadamente hagiográfico, o Livro II compreende um conjunto de vinte e dois milagres por intervenção de Santiago, em diversas regiões da Europa, abrangendo os fólios 139 a 155.

O Livro III é o mais pequeno de todos, apenas como 6 fólios (155-162). De carácter marcadamente histórico, narra a evangelização de Espanha pelo Apóstolo e a trasladação de seu corpo desde Jerusalém até à Galiza, e posteriormente até Santiago. Também nos descreve o costume dos primeiros peregrinos de recolher conchas marinhas nas costas galegas.

Também de carácter histórico, o Livro IV, é o segundo mais volumoso da obra, conhecido como Turpín ou Pseudo-Turpín, por falsamente ter sido atribuído ao bispo de Reims, Turpin. Contém vinte e seis capítulos em prosa, fólios 163 a 192, redigidos por um clérigo anónimo de origem francesa, provavelmente na primeira metade do século XII. É referido o papel que, contra toda a veracidade histórica, teria tido Carlos Magno na propagação e defesa do sepulcro do Apóstolo - Relata a entrada de Carlos Magno na Península, a derrota de “Roncesvalles” e a morte de “Roldán”, descreve também que Santiago apareceu em sonhos a Carlos Magno, incitando-o a libertar o seu túmulo dos muçulmanos, indicando-lhe a direcção, fazendo-o seguir por um caminho de estrelas e relatando a suposta peregrinação no mais puro estilo dos relatos de cavalaria.

É, no fundo, o apelo e a legitimação da luta contra os muçulmanos, para a libertação da Península do poder islâmico.

"Liber Perigrinationis" o conhecido Livro V, é um guia destinado aos peregrinos que pretendiam rumar a Compostela, nele são descritas as rotas e as etapas para chegar ao túmulo do Apóstolo, são caracterizadas as povoações do caminho, os rios, é traçada uma pormenorizada descrição dos povos, bascos, navarros, aragoneses, galegos. São também referidos outros lugares santos ao longo do caminho.

Nos últimos capítulos é traçada uma descrição pormenorizada da cidade e da basílica de Santiago. Trata-se, sem dúvida, do mais conhecido de todos os volumes aqui enunciados, ocupando os fólios 192 a 213 e ao qual iremos voltar mais à frente.

"Codex Calixtinus" ou "Liber Sancti Jacobi", conta ainda com dois apêndices. O primeiro é um caderno de 6 fólios com vinte e duas obras polifónicas, escrito pouco tempo depois, provavelmente antes de 1180. O segundo, incorporado posteriormente, conta com cinco fólios copiados por diferentes escribas, abarcando diferentes textos - entre estes textos está incluída uma falsa bula do papa Inocêncio II, na qual se dá a entender que o responsável e autor do códice é o monge cluniacense “Aymeric Picaud”, acompanhante de Guido de Borgonha em 1109, na sua peregrinação a Compostela. Segundo o mesmo texto, em 1140, “Aymeric” teria depositado o códice na Catedral de Santiago, aquele que seria o primeiro exemplar do “Liber Sancti Jacobi”.

A natureza da unidade temática dos volumes atrás referidos, a procura de solução para as questões relacionadas com o culto a Santiago bem como a importância das peregrinações a Compostela, explicaram no século XII, o agrupamento destes cinco livros num único Códice, daí o sentido do título que lhe foi atribuído por Joseph Bédier, Liber Sancti Jacobi ou Livro de Santiago, que lhe dá este nome no seu livro "Les Légendes Épiques. Recherches sur la Formation des Chansons de Geste".

No entanto, considerando o protagonismo que é atribuído, neste primeiro volume, ao papa Calixto II, na suposta autoria do exemplar conservado no Museu da Catedral de Santiago, a este primeiro livro é-lhe atribuído o título "Codex Calixtinus".

Para além do códice arquivado na catedral de Santiago, existem mais exemplares, completos e incompletos, alguns cópias deste manuscrito, feitos entre os séculos XII-XVI, que se encontram espalhados por diversas bibliotecas como a de Salamanca, a Britânica de Londres, a Vaticana, a Nacional de Madrid e o Archivio di Stato de Pistoia, a do Mosteiro de Santes Creus e a do Mosteiro de Alcobaça em Portugal. Existe ainda um outro exemplar no Mosteiro de Ripoll, copiado em 1173, em Compostela, pelo monge beneditino Arnaldo de Monte, mas apenas contém os livros II, III e IV e algumas partes do I e V.


LIVRO V - GUIA DO PEREGRINO

Assim conhecido, em razão do seu conteúdo, trata-se na verdade como já foi enunciado de uma descrição fascinante das rotas de peregrinação ao túmulo de Santiago Apóstolo. Etapas do caminho, lugares, rios - bons e maus -, nomes de vilas e cidades, referências aos três hospitais do mundo que serviam os peregrinos com destino a Jerusalém, Roma e Santiago, nomes de pessoas que contribuíram para a construção e manutenção do caminho, descrição pormenorizada das regiões e das suas gentes.

Pela forma como Aymeric Picaud descrevia os habitantes locais, entende-se uma clara animosidade para com os navarros e bascos, - trata-se de povos bárbaros, ferozes, capazes de matar por uma miserável moeda «Son un pueblo bárbaro, diferente de todos los demás en sus costumbres y naturaleza, colmado de maldades, de color negro, de aspecto innoble, malvados, perversos, pérfidos, desleales, lujuriosos, borrachos, agresivos, feroces y salvajes, desalmados y réprobos, impíos y rudos, crueles y pendencieros, desprovistos de cualquier virtud y enseñados a todos los vicios e iniquidades, parejos en maldad a los Getas y a los sarracenos y enemigos frontales de nuestra nación gala. Por una miserable moneda, un navarro o un vasco liquida, como pueda, a un francês.».

Melhor opinião tem contudo dos galegos, considerando-os mais parecidos com o seu próprio povo.

A referência aos santos ou aos lugares santos existentes, espalhados um pouco por todo o caminho, merece de Aymeric Picaud um destaque especial: a todos há que visitar, refere; entendendo-se a devoção como complementar ao percurso da peregrinação principal.

Merecendo uma atenção especial, a descrição da cidade de Santiago, é feita de forma muito detalhada, e completa. Desde a topografia da cidade, aos povoados vizinhos, às ruas, fontes, igrejas, albergues, e conselhos a peregrinos.

A basílica de Santiago é objecto de um discurso pormenorizado: portas, dimensões, naves, pórticos, torres, altares, o corpo e altar de Santiago, frontal de prata.

São engrandecidos os construtores da basílica. A dignidade da igreja de Santiago é enaltecida e colocada em destaque, assim como o Papa Calixto que é mencionado como responsável - que de feliz memória -, operou o processo da transferência do arcebispado de Mérida para Santiago.


AS QUATRO VIAS DE PEREGRINAÇÃO 

Para lá da sua primeira função como guia para o peregrino medieval, o livro de Aymeric Picaud, constituiu, também, um verdadeiro guia turístico, um dos primeiros, ou senão mesmo o primeiro de que há conhecimento. Nos séculos seguintes outros escritores fizeram o mesmo: Herrmann Künig no século XV, e Jean Tournai, Arnold von Harff, Domenico Laffi, Guillaume Manier e Jean Bonnecaze,

A rede tentacular de caminhos procedentes do norte da Europa entra em França entroncando nas quatro vias que abaixo se referem e se descrevem alguns dos principais lugares, assim:A “Vía Tolosana”, apelidada desta forma, devido à principal cidade que lhe dá o nome, é a mais meridional de todas, parte de Arles, segue depois para Montpellier, Toulouse, e entra nos Pirinéus pelo lado de Borce, seguindo por Somport, Jaca, Astorito, Tiermas, Monreal e finalmente reúne-se em Puente la Reina com a via procedente de Roncesvalles - este pequeno troço é hoje chamado Caminho Aragonês uma vez que se situa quase integralmente na região que atravessa.

A “Via Turonense”, talvez a mais importante para a época, procedente de Tours, recebia os peregrinos de Paris, Orleans e do Mont-Saint-Michel, seguindo por, Blois, Poitiers e juntava-se na localidade francesa de Ostabat com as “Vias Podiense”, provenientes de Le Puy, Conques e Moissac; - No Livro V, estas três cidades e Limoges são referidas com os nomes dos santos que se honram em cada uma: Santa Maria de Puy, Santa Fé de Conques, São Pedro de Moissac e São Leonardo de Limoges, o que nos mostra um pouco a intencionalidade em com que o guia foi escrito, na verdade no capítulo VIII, segundo López Pereira, este é um capítulo que contém uma engenhosa solução para que a peregrinação ao sepulcro do apóstolo não entrasse em conflito com os outros santuários que também reclamavam a presença dos peregrinos. Não se discutem os direitos de outros santos, senão que todos estão ligados a Santiago, fixando rotas diversas de tal forma que todos os santos do Caminho estejam subordinados ao apóstolo. Isto verifica-se com santos que tinham grande devoção em França, em finais do século XI, como os atrás referidos e ainda São Gil na Provença, ou São Eutrópio em “Saintes”. O mesmo acontecia em Espanha com São Isidoro, Santo Domingo e São “Zoilo”, em todos eles havia importantes relíquias a venerar como é referido pelo autor no capítulo atrás referido e “Lemovicense”, que em Vézelay reunia os peregrinos do Norte e passava por Limoges, e Périgueux.

Depois de St.Michele e Saint-Jean-Pied-de-Port, ainda em França, o caminho segue pelo vale de Cize e entra em Espanha por Valcarlos, subindo pelos Pirinéus até ao alto de Ibañeta, a 1057 m. de altitude, para daqui descer em direcção a Roncesvalles e reunir-se com a “Via Tolosana” em Puente la Reina onde formam um itinerário único até Santiago de Compostela - Aymeric Picaud reparte da seguinte forma as etapas do Caminho de Santiago pela via tolosana, 1º trajecto de “Somport a Jaca”, 36Kms; 2º de “Jaca a Monreal”, 97 Kms e e 3º de Monreal a Puente la Reina, 27 Kms.

As vias Turonense, Pudiense e Lemovicense, segundo Aymeric Picaud, convergem para em Ostabat, antes da localidade de St.Jean-Pied-de-Port. o autor divide em treze, as etapas desta última localidade até Santiago: 1.º trajectoSaint-Michel-Pied-de-Port, Roncesvalles - Viscacarret, 21 Km; 2.º trajecto, Viscarret-Pamplona, 28 Km; 3.º trajecto,Pamplona-Estella, 43 Km; 4.º trajecto, Estella-Nágera 69 Km; 5.º trajecto, Nágera-Burgos, 85 Kms; 6.º trajecto, Burg os-Fromista, 59 Kms; 7.º trajecto, Fromista-Sahagún, 55 Km; 8.º trajecto, Sahagún-León, 52 Km; 9ª trajecto, León - Rabanal del Camino, 64 Kms; 10.º trajecto, Rabanal del Camino-Villa Franca, 49 Km; 11º trajecto,Villa Franca-Triacastella, 47 Km; 12.º trajecto, Triacastella-Palas del Rey, 58 Km; e 13.º e último, Palas del Rey-Santiago, 63 km. 

O Guia Medieval do Peregrino, constituiu uma peça fundamental na identificação das localidades do Caminho, sua descrição e caracterização. Foi, sem dúvida, uma referência incontornável no fenómeno das peregrinações de âmbito religioso, bem como os demais que lhe sucederam.